Cópias silenciosas

16/09/2014 16:44

Cópias silenciosas
Apropriar-se de ideias e obras alheias, assumindo publicamente a autoria de um trabalho é uma prática antiga, da qual poucas áreas escapam. Quadros, músicas, livros, filmes e até receitas culinárias são alvo fácil de plagiadores. No meio acadêmico, o ctrl c, ctrl v já virou uma praga, como costumam definir os cientistas incomodados com a cópia de teses, dissertações e artigos. "O plágio é um engano para quem o lê e uma mentira para quem o assina como autor. (.) É um esconderijo de palavras e textos, um desconcerto indevido para autores e leitores", define o livro Plágio: palavras escondidas, de Debora Diniz e Ana Terra, que será lançado hoje em Brasília.
Debora é professora universitária e participa de comitês de ética. Ana Terra é editora de textos. De formas diferentes, as duas têm contato frequente com obras acadêmicas. Da experiência delas, que não raramente se deparam com trabalhos copiados, surgiu a ideia de debater, de maneira bem-humorada, mas aprofundada, esse tema tão caro ao meio científico. Os escândalos envolvendo pesquisas e artigos plagiados colocam em risco a própria credibilidade da ciência, destacam as autoras, que citam diversos casos de cópias. Em um deles, ocorrido no Brasil, os plagiadores chegaram a se apoderar de 100% de um artigo publicado 10 anos antes sobre o controle de qualidade da cachaça. Nem as ilustrações do original escaparam.
As autoras lembram, contudo, que nem sempre o pesquisador está mal-intencionado. Pode acontecer de, em um texto acadêmico, o autor citar outros trabalhos sem o crédito devido, mais por falta de informação do que por vontade de se apoderar do artigo alheio. Em 2011, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação, e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fizeram recomendações tanto para estudantes e autores quanto para as instituições de ensino. A ideia era orientar os pesquisadores para que eles não cometessem plágios e auxiliar as universidades na tarefa de coibir e caçar os imitadores. Uma das ferramentas recomendadas foram softwares capazes de detectar cópias.
Segundo Debora Diniz, embora a tecnologia acabe facilitando o plágio, ela também é um instrumento poderoso para farejá-lo. "Esse é um mecanismo que se retroalimenta: se temos mais informação disponível, mais facilmente podemos plagiar; por outro lado, seremos mais rapidamente flagrados", diz a doutora em antropologia e professora da Universidade de Brasília (UnB). Em entrevista ao Correio, ela insiste que o plágio não deve ser resolvido na seara penal: "Ele deve ser tratado como infração textual a ser sanada antes no campo da ética e da educação", defende.
Sempre se plagiou na ciência?
Sim, sempre se plagiou. Há quem pense que o plágio seja um mal da modernidade, fruto do acesso amplo à informação pela internet e do mecanismo de ctrl c, ctrl v. Mas isso não é verdadeiro. A história da ciência é repleta de casos de plágio anteriores à existência do computador, e mesmo estudantes já faziam cópias de livros e revistas. Talvez o mecanismo digital de copia-e-cola tenha simplesmente reduzido o trabalho braçal. Etimologicamente, a palavra "plágio", no sentido de roubo de ideias, tem origem no século 1, e seu conceito, assim como os de originalidade e autoria, variou ao longo dos séculos. Mas, talvez, o plágio exista desde que a desonestidade ou o descuido na escrita existem. Na arte, há uma história curiosa de apropriação do texto alheio. No século 14, Sebastian Brant publicou A nau dos insensatos, um conjunto de versos em alemão em que se criticavam vícios da sociedade, como o adultério e a cobiça. A obra fez sucesso e, a pedido de um editor de Estrasburgo, outro poeta acrescentou-lhe centenas de versos. E houve ainda outra distorção: quando os versos foram traduzidos para o latim, o tradutor inverteu a ordem dos capítulos. Brant não gostou do acréscimo de linhas, mas veja que estamos falando de literatura, um campo em que a discussão sobre cópia passa pelos temas da influência, da imitação criativa, da paródia. Os versos de Brant animaram Hieronymus Bosch a pintar O navio dos loucos (c. 1490--1500), tela que posteriormente provocaria Michel Foucault a pensar sobre a loucura. Agora, se um enredo parecido com o da obra de Brant acontecesse hoje na ciência, teríamos de enfrentar um problema ético de apropriação textual indevida, ou mesmo uma acusação de plágio. O próprio Foucault, já que estamos falando dele, certa vez pôs em questão os limites da regra de reconhecimento das fontes na escrita acadêmica. Ao declarar que citava Marx sem fazer referência explícita a ele, sem usar aspas, ele questionou: "Será que um físico, quando faz física, sente a necessidade de citar Newton ou Einstein?" Essa é uma boa questão, que desafia a instabilidade que pode haver na linha divisória entre cópia, paráfrase ou citação. Não podemos dizer que Foucault seja um plagiador.
Por que vocês se interessaram em pesquisar o tema?
Ana e eu exercemos diferentes papéis como leitoras de peças acadêmicas. Como professora, orientadora de teses e membro de comissões de ética, era com certa frequência que me deparava com casos de infrações textuais, mas também com as angústias do escritor ou aprendiz de escritor, perante os desafios de construir um texto acadêmico. Para Ana, a rotina como editora de livros a tinha colocado em situações de enfrentamento de cópias indevidas já num momento em que o texto dos autores - e estamos de falando de escritores experientes, e não de estudantes aprendizes - estava em uma fase adiantada nos trabalhos para a publicação. Veja que há aí um constrangimento. Imagine dizer a um pesquisador maduro: "Olhe, isso não pode, isso é cópia", ou "Não é uma paráfrase razoável, precisamos mudar". Há um silêncio em torno do plágio que favorece os descuidos e mesmo a ignorância sobre o tema. E foi esse silêncio que constatamos ao buscar o que se discutia na literatura sobre plágio no Brasil. Então, resolvemos investigar o assunto. Publicamos um artigo em 2011 e seguimos discutindo o tema com pessoas de várias universidades brasileiras. Definimos argumentos, refizemos teses, ouvimos angústias de pessoas que haviam sido plagiadas, pesquisamos histórias e diretrizes de enfrentamento. E assim o livro foi ganhando essa forma, que chamamos de uma etnografia do plágio.
A enorme pressão para que pesquisadores publiquem, o publish or perish (publique ou pereça), acaba sendo um incentivo ao plágio?
Não temos evidências de que a máxima do publish or perish leve necessariamente ao plágio. Eu diria que a imensa maioria dos pesquisadores que têm uma vida acadêmica produtiva o faz sem recorrer à desonestidade, mesmo sob a forte pressão da corrida pelo sucesso acadêmico. Certamente, há problemas com o sistema de métricas que valoriza o pesquisador pelo número de publicações, mas seria precipitado afirmar que o plágio decorre diretamente da pressão por publicar. Se, por um lado, acreditamos que as motivações do plágio sejam variadas, por outro, não temos estudos que permitam acessar as desrazões do plagiador. Essa é uma voz ainda pouco ouvida.
Como professora universitária, a senhora recebe muitos trabalhos copiados?
O plágio cometido por estudantes requer um olhar cuidadoso e acima de tudo pedagógico. Veja que estamos diante de escritores iniciantes, ainda em processo de familiarização com as regras da comunicação acadêmica. Há equívocos nessa fase - quanto ao uso de aspas ou à normalização bibliográfica, por exemplo - que deveriam ser abordados em uma perspectiva educadora antes que disciplinadora. Mais do que vigiar e punir, precisamos sensibilizar os estudantes para como comunicamos nossas ideias no meio acadêmico. Mas devemos também ter um olhar mais atento às estratégias de avaliação que adotamos como professores. Se os alunos entregam trabalhos copiados ou comprados prontos, talvez o que estamos exigindo deles seja pouco criativo ou carente de significado em suas vidas acadêmicas.
E no meio acadêmico, já viu colegas plagiarem? Como deve ser o procedimento de um pesquisador ao perceber que o colega está copiando um trabalho?
Essa será sempre uma situação delicada. Uma acusação de plágio - e mesmo a punição por ele, em casos em que o malfeito é comprovado - gera grande constrangimento e prejuízo à carreira do pesquisador. Por isso, o acompanhamento de uma suspeita de infração textual requer cautela. É preciso verificar a materialidade da cópia, mas também ouvir o pesquisador. Se comprovado o plágio, apostamos que a mediação entre o pesquisador e o autor ofendido seja uma saída razoável. Uma retratação pública pelo pseudoautor, por exemplo, pode ser um fechamento plausível. Caso o plágio envolva um artigo submetido a publicação ou já publicado, o editor do periódico deve ser informado para que possa rejeitar ou retratar o artigo. O acionamento de comissões de ética acadêmica pode ser outro caminho, mas elas são ainda raras no país. É preciso que as universidades se articulem para criar essas comissões e capacitá-las a lidar com o plágio. No Brasil, as diretrizes e políticas universitárias sobre plágio são ainda escassas.
Como os softwares caça-plágio estão ajudando a combater essa prática?
Os softwares permitem poupar tempo de cotejamento de textos e deixam explícita a materialidade do plágio. Ainda assim, essa materialidade deverá ser checada por bons leitores, que avaliarão o caso. E nem sempre essa materialidade é encontrada, pois pode ser que o texto do pseudoautor dissimule a cópia, dificultando o flagrante eletrônico. Mas é preciso atentar que os softwares atendem a um mercado. Como produtos tecnológicos, quanto mais avançadas são as ferramentas de detecção, mais avançadas também são as técnicas para o disfarce da cópia. Mais do que isso: a máquina verificadora de plágio serve à lógica da vigilância e punição, que não é capaz de mudar comportamentos de cópia nem de romper o silêncio sobre o plágio. Na verdade, a sentinela tecnológica gera preocupações éticas - no contexto universitário, a presunção de culpa dos estudantes é uma delas - e negligencia a necessidade de sensibilização para as regras da comunicação acadêmica.
Como a senhora avalia a legislação antiplágio no Brasil?
Embora haja casos de plágio enfrentados no campo jurídico, nem sempre uma cópia indevida é uma violação de propriedade intelectual, assim como nem toda violação de direito autoral envolve plágio. É possível plagiar uma obra que esteja em domínio público, por exemplo, e não ser processado por isso. O plágio não está previsto como crime no Código Penal brasileiro. Eu diria que nem precisa: ele deve ser tratado como infração textual a ser sanado antes no campo da ética e da educação que no campo penal. Além disso, nos últimos anos, órgãos importantes de fomento à pesquisa no Brasil, como o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), divulgaram diretrizes que incluem o tema do plágio, mas é preciso avançar no debate.
A senhora concorda que, ao mesmo tempo em que facilita o plágio, a tecnologia, em especial, a internet, também ajuda a detectá-lo mais facilmente?
Sem dúvida. Esse é um mecanismo que se retroalimenta: se temos mais informação disponível, mais facilmente podemos plagiar; por outro lado, seremos mais rapidamente flagrados, seja pela simples investigação de similaridades textuais em sites de busca, seja pelo uso de softwares caça-plágio. E já existem programas capazes de acessar uma multiplicidade de bases de dados, além de milhares de páginas virtuais. Há quem diga que o amplo acesso à informação seja o responsável por uma epidemia do plágio, mas não temos evidências sistemáticas sobre essa hipótese.
Lançamento
Plágio: palavras escondidas, de Debora Diniz e Ana Terra (Editora Letras Livres e Editora Fiocruz). Hoje, às 19h30, no Balaio Café (201 Norte).
Trechos
"O plágio confunde o leitor, pois perturba a confiança na ciência. Não se esperam dos acadêmicos peças literárias, mas textos ordinários que comuniquem teses ou resultados de pesquisa com clareza e honestidade. Porém, se podemos nos perdoar pela simplicidade estética, não podemos faltar com a lealdade aos leitores, que buscam nos textos acadêmicos respostas para suas inquietações existenciais ou cotidianas."
"O plágio-cópia é a expressão mais ingênua da preguiça intelectual ou do mutismo autoral. Há rumores de que seja uma especialidade de estudantes ávidos por se livrar de tarefas indesejadas. É fácil descrever os estudantes como preguiçosos e incapazes de exercitar a criação. Se há alguma verdade nesse veredito, há também a pergunta sobre o que se passa na universidade para os trabalhos acadêmicos serem tão desestimulantes."
"Comprovada a cópia, raros são os plagiadores que assumem a intenção do ato. É comum saírem em busca de motivações ocultas para justificá-lo como não intencional: memória fotográfica, descuido no registro das notas de leitura e desconhecimento das regras da comunicação acadêmica são as alegações mais comuns. Ou os plagiadores se repetem até mesmo quando em suas razões ocultas."
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O escândalo está sendo chamado de "a farra da pós". Cada diploma desse tipo de curso acrescenta meio ponto à classificação do candidato no certame. E, conforme os editais publicados nos estados, não há limite para a elevação da nota a cada certificado-com exceção dos de mestrado e doutorado. Com isso, vários inscritos inflaram a pontuação no certame apresentando de 10 até 20 pós-graduações concluídas de forma simultânea entre seis meses e um ano. Trata-se de um feito praticamente impossível. Afinal, para cumprir a carga horária mínima estabelecida pelo MEC, de 360 horas, os donos dos diplomas teriam de estudar no mínimo 20 horas por dia. Levantamento do CNJ mostra que, dos 13.838 cartórios no país, 4.785 são dirigidos por pessoas que não fizeram concurso.
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